Em meio a essa pandemia avassaladora, nossas rotinas foram desfeitas
como um castelo de areia e temos que nos reinventar diariamente. E
tentar não surtar com a família, acredito que um dos maiores
desafios está justamente em aprender a conviver 24 horas por dias os
7 dias da semana com nossos conjunges, filhos e pais. Tento não ter
um ataque de pelanca a cada vez que peço uma simples tarefa 789
vezes e não enlouquecer quando o digníssimo esquece a luz acessa ou
a garrafa de água fora da geladeira.
Estou diariamente me reinventando e uma das minhas maiores diversões
é conversar com o pessoal nos grupos do whats. No grupo da mesma
doença que tenho( NMO), carinhosamente apelidei cada um dos membros
de acordo com alguma característica ou comportamento, lógico que
com uma pitada de ironia, sátira e humor, tudo na medida, sem magoar
meus amigos, amigos esses que são quase da família, afinal
conversamos sobre tudo e sobre nada. Todos os dias, estamos presentes
no dia a dia um do outro, dividindo alegrias, tristezas, dores,
conquistas e fracassos.
Usando apelidos, cada dia eu criava com as cores da minha imaginação
pequenos contos engraçados para tentar divertir meus amigos, esses
contos são pequenos furtos,
recheados de humor e aventuras. Vamos aos apelidos, para imergir meus
amados leitores nessa trama de fantasia com gotas de magia e
pinceladas de devaneios.
Apelidei a Liege de troféu lesma, porque conversávamos por horas e
ela aparecia depois de todo o assunto já ter mudado para comentar
sempre com atrasos as conversas. O André é nosso bendito ao fruto,
único menino do grupo, nele usei uma característica física, ele é
completamente cego, prontamente o chamei de morcego, segundo ele
quando eu me drogo chamo ele de Batman, errado não está… kkkk A
Fabi, passa o dia offline, só aparece a noite para conversar conosco
e também tem baixa visão, logo apelidei-a de minhoca, bichinho que
trabalha a noite e é quase cego. A Fafá eu apelidei de agarra
marido, porque eu peguei no pé dela dizendo que as dores nas
“juntas”passavam com uma boa “noitada” com o marido.
A Marcinha como bebe meia taça de vinho (misturado com água) e já
fica trocando as pernas, comecei a chamá-la de esponja paraguaia. A
Rô eu apelidei de empata foda, porque estávamos numa vibe toda
sensual mandando fotos de meninos bonitos no grupo, afinal o André
não enxerga, não vai se importar rsrsrsrsrsrs, a Rô aparece do
nada e manda umas fotos de uns homens barrigudos, carecas e na capa
da gaita, poxaaaa Rô, não empata a foda! A Dê, ganhou o mimoso
apelido de vó, só porque é a menina mais experiente do grupo. A
Mi, acabei apelidando ela de tartaruga, ela tem dias que passa o dia
fazendo as encomendas dela, e estava sempre chegando no meio das
conversas perguntando algo que já tinha sido dito. A Ale, teve uma
crise de ciúmes porque o irmão dela resolveu levar a primeira
namorada em casa para eles conhecerem, ahhh ganhou o apelido de irmã
ciumenta.
E a nossa estrela principal desse conto é a Beta, apelidada de
lagartixa, porque mandava alguns áudios chorosos contanto tudo que
estava passando internada pela doença de base, então eu mandava um
áudio dizendo: Não te mixa lagartixa… e assim pegou o apelido.
A lagartixa não estava melhorando, e eu fui dormir pensando, vou
escrever o próximo conto dedicado a ela, o resgate da lagartixa,
onde cada um de nós teríamos um papel para conseguir resgatar ela
do hospital.
Os dias se passaram, a correia do dia a dia, as aflições por causa
da pandemia acabaram me abalando e não consegui escrever o conto
para alegrar a minha amiga. Como ela não estava bem eu conversava
com o marido dela quase todos os dias para saber notícias.
Até que recebo a triste notícia que ela tinha ido para a UTI,
estava entubada, inconsciente e com falência renal, e não era pela
nossa doença, ela ficou tanto tempo no hospital que acabou
contraindo o monstro que está assombrando nossas vidas nesses
últimos meses: O COVID. Somente um milagre poderia salvá-la.
Na
noite fatídica de quarta-feira, infelizmente
recebi a notícia que dessa vez o milagre não aconteceu e que não
são só de alegrias que se vive a vida. Chorei, chorei por tê-la
perdido para o COVID, chorei pelas famílias que estão perdendo seus
entes queridos, chorei pelos enterros de caixão fechado que a minha
amiga e tantas outras amigas e amigos estão tendo, chorei pelas
pessoas que não estão respeitando a violência desse vírus e estão
expondo os grupos de risco, como nós, minha amiga estava
representando tudo isso e muito mais. Sei que ainda vou chorar, vou
sentir saudades e muitas outras pessoas passarão pela mesma dor, mas
eu ainda devo esse “resgate” para minha amiga… Então minha
lagartixa, essa história é para você:
“Mas
montei um plano triunfal, para resgatar a
nossa lagartixinha desse leito do hospital. O Batman, sobrevoa a
entrada no Hospital da PUC para se certificar que a movimentação
dos seguranças noturnos, a informação é de que estavam no
intervalo. A vó entra caminhando bem devagar no saguão do hospital
propositalmente deixa cair suas agulhas de tricô,
nesse instante a moça da recepção sai do balcão para socorrer a
vovó, quem resiste a uma vó singelamente necessitada de ajuda?
Chega a empata foda e distrai a ascensorista do elevador, dando
passagem livre para a agarradora de marido e a esponja paraguaia
conseguirem ir até o quarto andar, onde nossa lagartixa estava
enclausurada. A Ale teve uma crise de ciúmes porque não conseguiu
subir, teve
que
ficar cuidando da namorada do irmão. As
meninas passaram com sucesso pelo posto de enfermagem sem serem
vistas, glória, chegaram no quarto da Beta!
Conseguiram desconectar nossa amiga dos fios e tubos que lhe prendiam
a cama e partiram rumo ao elevador. Quando velozmente o enfermeiro
gigante surge no corredor tentando brecar o rapto. Nesse instante as
“velozes” troféu tartaruga e lesma surgem na porta do elevador e
com seus passos ridiculamente lentos conseguem evitar a passagem do
enfermeiro. Conseguiram passar pela portaria e a minhoca já estava
na frente sinalizando onde ela tinha construído os tuneis da fuga. A
lagartixa está livre, conseguimos!”
Sucesso! Nossa turma concluiu esse resgate magistralmente, e, pelo
menos, na ficção salvamos nossa amiga! E para você leitor que está
se perguntando onde eu entro nessa mágica história, eu singelamente
lhe respondo, estou aqui só para lhes contar, de que adianta ter uma
boa história se não tiver quem conte?
Ps: Esses últimos parágrafos são um conto de ficção, a verdade
dele são os apelidos e a singela homenagem a eterna amiga Beta. Vá
em paz amiga! Você será eterna em nossos corações!